MC Poze: o que diz a lei sobre apologia ao crime e liberdade de expressão
A prisão temporária do cantor MC Poze do Rodo, sob acusação de apologia ao crime e suposta associação para o tráfico, levantou questionamentos jurídicos sobre os limites da liberdade de expressão artística no Brasil.
O que aconteceu
Investigado por apologia ao crime e associação para o tráfico, o cantor MC Poze do Rodo foi preso temporariamente hoje (29), no Rio de Janeiro. A Polícia Civil afirma que suas letras e shows em comunidades dominadas pelo tráfico representam uma ameaça à ordem pública. Especialistas ouvidos por Splash apontam riscos de censura, abuso legal e seletividade penal contra manifestações culturais da periferia.
A acusação de apologia ao crime está praticamente em desuso, segundo o advogado criminalista Guilherme Gama. Ele explica que o artigo 287 do Código Penal só se aplica quando há incitação clara e direta à prática criminosa. "Caso contrário, estaríamos cerceando uma importante forma de expressão cultural", afirmou.
Para Gama, letras que mencionam drogas ou armas, sem glorificação explícita, não configuram apologia. "Na maioria das vezes, elas narram conflitos sociais desconhecidos por parte da sociedade", disse. O advogado considera "juridicamente delicado" usar a norma penal contra manifestações artísticas.
A realização de shows em comunidades controladas por facções também não pode, por si só, sustentar a acusação de associação para o tráfico. "Isso evidencia mais as deficiências do Estado do que a culpa do artista", afirmou Gama. Ele critica o que chamou de "criminalização automática da geografia".
Sobre a prisão temporária, Gama afirma que a medida é excessiva, populista e midiática. "Não se trata de um crime previsto na Lei 7.960/89, que regula esse tipo de prisão", pontuou. Segundo ele, a detenção revela possível constrangimento ilegal, sem base concreta nos autos.
Marcha da Maconha
O também criminalista Felipe Guerra Camargo Mendes destaca que manifestações artísticas, ainda que provocadoras, não configuram crime. "A exaltação ao crime deve ser clara, direta e incisiva", afirmou. Ele lembra que o STF já reconheceu a legalidade de manifestações como a Marcha da Maconha, por tratar-se de exercício legítimo da liberdade de expressão.
Mendes reforça que cantar em locais dominados por facções não comprova vínculo com o tráfico. "Esse raciocínio é perigoso, pois esbarra na criminalização da geografia e da classe social", afirmou. Segundo ele, a associação criminosa exige provas de estabilidade, vínculo e divisão de tarefas — não suposições baseadas no local do show.
Na avaliação de Mendes, prender um artista com base em suas letras configura censura. "Prisão não é instrumento de repressão cultural", disse. Ele ressalta que a prisão temporária exige fundamentação concreta, o que não parece ter ocorrido neste caso.
O que diz a Constituição
A constitucionalista Fernanda Garcia Escane reforça que a liberdade de expressão artística é garantida pela Constituição, mas não é absoluta. "Ela pode ser relativizada em casos de incitação direta à prática de crimes, mas isso exige prova concreta de intenção criminosa", afirmou. Para ela, críticas sociais, ainda que desconfortáveis, estão protegidas pelo texto constitucional.
Fernanda cita precedentes do STF que vedam qualquer forma de censura prévia a conteúdos artísticos. Ela lembra o caso do especial de Natal do Porta dos Fundos, em que a Corte reforçou que o Judiciário não pode interferir previamente na criação artística. "O entendimento do Supremo é claro: eventuais excessos devem ser resolvidos por ações civis, nunca por repressão penal", afirmou.
A advogada alerta que o uso do Direito Penal nesse tipo de situação pode inibir a produção artística e gerar insegurança jurídica. "A seletividade na aplicação da norma penal reforça desigualdades e fragiliza o Estado Democrático de Direito", disse. Segundo ela, o Judiciário deve atuar com base no princípio da proporcionalidade, respeitando os limites entre segurança pública e liberdade cultural.
As acusações contra MC Poze envolvem diferentes interpretações legais. Para ajudar a entender os fundamentos discutidos pelos especialistas, o Splash listou os principais artigos e decisões relevantes:
Entenda o que diz a lei sobre apologia, arte e prisão
- Art. 287 do Código Penal: define como crime "fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime". Para juristas, a aplicação exige propaganda clara e intencional.
- Art. 286 do Código Penal: tipifica como crime "incitar, publicamente, a prática de crime". É considerado mais grave que a apologia e também exige dolo direto.
- Lei nº 7.960/89 - Prisão temporária: prevê hipóteses restritas para prisão temporária. Apologia ao crime não está entre os delitos que autorizam a medida.
- Art. 35 da Lei nº 11.343/06 - Associação para o tráfico: exige prova de vínculo estável, divisão de tarefas e atuação em grupo com o fim de traficar drogas. Apenas se apresentar em comunidade dominada por facções não configura esse crime.
- Art. 5º, IX, e Art. 220 da Constituição Federal: garantem a liberdade de expressão e de manifestação artística, vedando a censura prévia.
- ADPF 187 (STF, 2011): autorizou a realização da Marcha da Maconha, reconhecendo o direito de manifestar ideias, mesmo impopulares ou controversas.
- Reclamação 38.782/RJ (STF): decisão favorável ao especial de Natal do Porta dos Fundos reafirmou que o Judiciário não pode interferir previamente em conteúdos artísticos.
Esta não é a primeira vez que MC Poze do Rodo enfrenta problemas com a Justiça. Em 2019, ele foi preso em Sorriso (MT) durante um show, acusado de corrupção de menores, tráfico de drogas e apologia ao crime — acabou solto após audiência de custódia. Em 2023, teve bens apreendidos em investigação sobre rifas ilegais, mas conseguiu reverter a decisão na Justiça. No mês ado, a Justiça do Rio determinou a devolução de carros e joias apreendidos durante operação da Polícia Civil, por ausência de vínculo direto com atividades ilícitas.