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Acusação de genocídio em Gaza, um debate difícil

05/06/2025 10h56

Diante das imagens do conflito em Gaza, cada vez mais vozes qualificam como genocídio a guerra conduzida por Israel no território palestino. Uma figura jurídica com uma imensa carga política e difícil de comprovar, alertam os juristas.

A acusação de genocídio adquire um caráter especialmente simbólico no caso do Estado de Israel, criado após o Holocausto, e onde as memórias desse grande crime da história foram revividas pelo ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual morreram 1.218 pessoas do lado israelense, e 251 foram sequestradas.

O termo "genocídio" apareceu no debate jurídico apenas alguns meses após o início das represálias israelenses, destinadas a "destruir" o Hamas e obter a libertação dos reféns.

Os aliados de Israel, por outro lado, apoiaram a resposta militar como um ato de legítima defesa.

Porém, 19 meses depois, o tom mudou entre os dirigentes europeus, diante de um balanço que ultraa os 54 mil mortos em Gaza, da devastação em larga escala, da fome e dos numerosos deslocamentos impostos à população de Gaza, sem esquecer as declarações inflamadas das autoridades israelenses.

"Nós não negociamos com um Estado genocida", disse Pedro Sánches, presidente do governo espanhol, em meados de maio no Parlamento, que semanas antes decidiu rescindir um contrato de compra de munição com uma empresa israelense.

Na América Latina, o presidente chileno Gabriel Boric acusou, esta semana, Israel de cometer um "genocídio". Uma acusação também formulada pelo brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e anteriormente pelo presidente colombiano, Gustavo Petro.

O drama de Gaza fratura a sociedade israelense e também a diáspora judaica. Alguns já utilizam esse termo para qualificar o que acontece no território palestino.

Israel, cujo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant são alvo de uma ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a humanidade, qualificam as acusações como "escandalosas".

O TPI emitiu um mandado de prisão também contra o chefe do braço armado do Hamas, Mohamed Deif, retirado em fevereiro após sua morte.

Mas quais são as implicações jurídicas e políticas dessa classificação? E, acima de tudo: é relevante para acabar com a tragédia?

- Quem fala de genocídio? -

Do lado das organizações internacionais, a Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH) foi a primeira, em dezembro de 2023, a afirmar que Israel estava cometendo um genocídio, seguida pela Anistia Internacional um ano depois e pela Human Rights Watch (HRW).

Em uma decisão notável em janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) solicitou, em uma demanada apresentada pela África do Sul, a Israel que se abstivesse de qualquer ato de genocídio, e alertou para um "risco real e iminente" de "prejuízo irreparável" para os palestinos.

Sem se pronunciar sobre o mérito, a CIJ pediu em janeiro, março e maio de 2024 a Israel que permita o o de ajuda humanitária, e previna e puna a incitação ao genocídio. As ordens são juridicamente vinculantes, mas Israel não as cumpriu.

Na ONU, o secretário para operações humanitárias, Tom Fletcher, incentivou em maio os líderes mundiais a "agir para impedir um genocídio".

Historiadores israelenses como Amos Goldberg e Omer Bartov também falam de "genocídio" em Gaza.

Em um longo artigo publicado em agosto de 2024 no jornal  The Guardian, Bartov, um reconhecido especialista israelense-americano do Holocausto, contou como chegou à conclusão, após a ofensiva de Israel em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, de que seu país era "culpado de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e ações genocidas sistemáticas".

- Do que se trata? -

O conceito de genocídio foi criado em 1944 pelo jurista Raphael Lemkin, judeu polonês e assessor da Secretaria de Guerra dos Estados Unidos, para designar os crimes nazistas contra os judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial.

Aparece juridicamente definido a Convenção das Nações Unidas de 1948 como um crime cometido "com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso".

Para determinar um genocídio, é necessário estabelecer a realização de pelo menos um dos cinco atos consecutivos deste crime, assim como a intencionalidade.

Os cinco atos constitutivos de genocídio são: "assassinato de membros do grupo", "lesão grave à integridade física ou mental dos membros do grupo", "submissão intencional do grupo a condições de existência que acarretem sua destruição física, total ou parcial", "medidas destinadas a impedir os nascimentos dentro do grupo" e "transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo".

Uma matriz importante: todos os juristas consultados pela AFP destacam, ao contrário da ideia comum de que o genocídio é "o crime dos crimes", que o direito internacional não estabelece nenhuma hierarquia.

Isto significa que, no que diz respeito às penas exigidas para seus culpados, é equivalente ao crime de guerra e ao crime contra a humanidade.

Em Gaza, "estamos assistindo a uma violência massiva em larga escala exercida contra os civis", aponta Thijs Bouwknegt, especialista do instituto holandês NIOD.

"Há uma política destinada a que a população civil vá embora ou morra", resume, sem afirmar categoricamente que está em curso um genocídio.

"Não há dúvida de que crimes de guerra e crimes contra a humanidade estão sendo e foram cometidos", destaca o advogado Omer Shatz, que enumera a destruição massiva de infraestrutura, o bloqueio total da ajuda humanitária imposto por Israel desde 2 de março - aliviado um pouco nos últimos dias - e os deslocamentos da população.

"Não é necessário ter um doutorado em direito para ver que já não há infraestruturas, nem hospitais, nem escolas, nem nada", acrescenta.

"Como juristas, podemos constatar que se reúnem os indicadores do crime de genocídio. Mas esse debate não deveria atrasar as prioridades humanitárias imediatas", disse por sua vez a Associação de Juristas pelo Respeito do Direito Internacional (Jurdi).

Thijs Bouwknegt aponta que o crime de genocídio é "incrivelmente difícil" de estabelecer, tanto a nível individual como estatal, porque "é preciso demonstrar a intenção e demonstrar que está é a única explicação possível para o ocorrido".

- Quais são as implicações imediatas? -

A convenção de 1948 estabelece que todos os Estados signatários devem "prevenir" o genocídio, ou seja, detectar os indícios antes que esses crimes sejam cometidos, e agir para impedi-los, como lembrou a CIJ em 2024.

O texto não especifica por quais meios, mas existe uma ampla gama de medidas para fazer pressão: interromper o fornecimento de armas, adotar sanções políticas, econômicas...

Por exemplo, a União Europeia prevê reexaminar o acordo de associação com Israel, algo que vários Estados-membros pediram no final de maio.

"A reação deveria ter acontecido muito antes. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde [o ex-presidente Joe] Biden poderia ter declarado "pare" a qualquer momento", observa Omer Shatz.

Mas alguns países, como Alemanha e Estados Unidos, os dois principais fornecedores de armas de Israel, se recusam a questionar sua cooperação militar ou comercial, o que lhes custou acusações de cumplicidade de genocídio. A Nicarágua acusou a Alemanha na CIJ de "facilitar a execução do genocídio" com seu "apoio político, financeiro e militar a Israel".

Para a associação Jurdi, deve-se aplicar "o mesmo raciocínio" aos conflitos na Ucrânia e em Gaza. "A UE já está em seu 17º pacote de sanções contra a Rússia porque esta viola o direito internacional ao se apropriar de um território pela força e ao atacar civis e suas infraestruturas. É exatamente o que está acontecendo em Gaza", acrescenta a associação.

No final, a adoção ou não de medidas fortes depende, sobretudo, da "boa vontade" dos aliados de Israel, segundo Jurdi. "Na realidade, estamos no âmbito político, não no campo jurídico".

- Uma classificação para a História -

Um genocídio pode ser reconhecido por um tribunal internacional, a ONU ou os própios Estados, mas esta classificação gera muita controvérsia.

Por exemplo, a Turquia ite que o Império Otomano realizou massacres de armênios durante a Primeira Guerra Mundial, mas rejeita o termo genocídio, reconhecido, no entanto, por quase 30 países.

Justamente devido à dificuldade de estabelecer a intenção, o advogado Omer Shatz pediu em dezembro de 2024 que o procurador do TPI iniciasse processos contra oito autoridades israelenses por "incitação pública e direta ao genocídio".

O relatório de 170 páginas entregue ao TPI compila várias declarações de líderes após o 7 de outubro de 2023, como a do ex-ministro de Defesa Yoav Gallant, que mencionou o combate de Israel contra "animais humanos", ou outra do ministro de extrema direita Bezalel Smotrich, na qual citou um "extermínio total" em Gaza.

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© Agence -Presse

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