Astro da várzea se destaca em Londres após perder dedos do pé em acidente

Cinco segundos e três dedos que ficarão eternizados na várzea. Ronaldo Henrique interceptou uma bola na entrada da área adversária, puxou para a direita e marcou o primeiro gol da partida inédita na capital da Inglaterra. O chute colocado em pleno Emirates Stadium saiu do mesmo pé que já contrariou laudo médico e que carrega as marcas de um acidente de moto que por pouco não foi fatal.
Três dedos em Londres
O craque do Arsenal de Guarulhos inaugurou o placar na final da várzea no Emirates mais de quatro anos após ter sofrido grave acidente. O atacante fez o primeiro da vitória por 3 a 0 sobre o Arsenal Raiz, do Jaçanã, na decisão da Copa OMO Varzenal, torneio de "sósias" brasileiros do gigante londrino que levou os finalistas até a casa do anfitrião.
A primeira e única queda de moto do jogador por pouco não custou sua carreira — e a vida. No dia 16 de março de 2021, ele estava ando por um cruzamento quando foi atingido por outra motocicleta. Na época, estava com 23 anos e jogava profissionalmente pelo Atibaia.
Ronaldo sofreu múltiplas fraturas, precisou ser submetido a cirurgias e acabou perdendo dois dedos do pé direito. O estrago foi grande, mas poderia ter sido pior. Na mesa cirúrgica, os médicos ainda conseguiram salvar outro dedo.
Se fosse com um carro, acho que tinha morrido. É difícil eu andar de moto. Nunca tinha caído na minha vida, não sou de andar imprudente, de empinar, mas infelizmente acabou acontecendo em cruzamento, moto com moto. Eu perdi quatro dentes, dois dedos [do pé], tive que colocar duas placas no braço, quebrei mais três três dedos da mão. Ronaldo Henrique, ao UOL
O acidente também melou um contrato que ele tinha encaminhado. O atacante diz que estava perto de fechar com o Fluminense, mas a negociação travou depois do episódio. Destro, ele teve danos irreversíveis em seu principal "instrumento" de trabalho.
Creio que eu perdi a melhor oportunidade que eu tive na minha vida. Nessa época, o Fluminense estava de olho em mim e já estava meio que certo, só que não andou mais para a frente depois desse acidente. Foi um baque na minha vida, mas eu agradeço a Deus por eu ter ficado vivo.
Laudo contrariado
As lesões foram tão graves que ele recebeu um laudo de que só voltaria a andar depois de dois anos. O jogador, no entanto, não se contentou com a previsão médica e focou no que estava ao seu alcance: fé e fisioterapia.
Em cinco meses, Ronaldo já estava correndo; no mês seguinte, retomou os treinos e a carreira profissional por times das séries A2 e A3 do Paulistão. A recuperação foi um sucesso, ele conseguiu se adaptar à nova condição física e, logo em seu retorno após o acidente, fez o gol da vitória de seu time em amistoso. Em meio a isso, convivia com a desconfiança alheia.
Eu fui resiliente na minha fisioterapia, na minha vida. Não me entreguei. Foi um baque, mas eu superei. Eu fazia fisioterapia todo dia e sentia muita dor. Tinha que sair de casa sabendo o quanto eu ia sofrer, mas se eu não fosse resiliente, não estaria conseguindo jogar futebol, andando direito, fazendo tudo normal com três dedos. Hoje em dia, os times não perguntam mais nada do meu pé, só se quero estar lá
Antigamente, eu contava essa história e chorava, ficava muito triste, mas eu já entendi que se tem a mão de Deus, tem um propósito. Sou destro, aí todo chute que eu dou você já sabe a resenha, né? É chute de três dedos, chapéu de três dedos... Os caras são muito chatos (risos). Ronaldo
"Final de várzea no estádio do Arsenal?"
Ronaldo, a princípio, recusou o convite para disputar o torneio que levou os finalistas para a Inglaterra. Ele não acreditava que a decisão de um torneio de várzea poderia ser disputada no estádio do Arsenal e respondeu que não compensava para ele, causando indignação no treinador.
Quando o Rony, nosso treinador, me ligou, eu neguei. Eu pensei no meu filho, pensei em várias coisas e falei: 'Não compensa para mim'. Eu também não acreditei, né? Eu falei: 'Rony, vamos jogar uma final de várzea no estádio do Arsenal, cara? Aí ele respondeu, 'O quê? Não compensa para você jogar uma final em Londres?'. Eu não estava botando fé, mas acabei indo. E não é que a gente está aqui [na Inglaterra]?
O atacante, que tem oito anos de carreira, fez sua primeira viagem internacional pela várzea. Revelado pelo Atibaia em 2017, o jogador de 27 anos soma agens por Figueirense, Linense, São Bernardo e Real Noroeste. Neste ano, disputou a A3 pelo Lemense.
Em Londres, Ronaldo foi eleito o melhor jogador da partida e recebeu o prêmio das mãos de Gilberto Silva. Ídolo do Arsenal, o pentacampeão prestigiou o evento no Emirates junto de Ian Wright, segundo maior artilheiros dos Gunners —atrás apenas de Henry.
Sensação única. Já joguei profissionalmente, e o nervosismo que senti aqui eu não senti em nenhum jogo do profissional. Experiência incrível, ainda mais poder fazer gol e sair como craque do jogo... fui craque do jogo no Emirates. O gol foi de três dedos (risos).
Ele joga atualmente por quatro times amadores de São Paulo, mas não fecha as portas para uma volta ao profissional: "Lá você pode dormir pobre e acordar rico". Ele destacou que, no momento, a várzea se mostra mais interessante financeiramente
Não larguei o profissional, mas muitos jogadores estão preferindo ficar na várzea porque estão ganhando mais do que em muitos times 'pequenos'. As propostas que eu recebo não me agradam e não compensa eu sair de casa por pouco, sendo que na várzea, graças a Deus, eu consigo fazer um valor bom.
Ronaldo Henrique
*O repórter viajou a convite da Unilever